Inspirado na obra de Ana Paula Maia, o longa mergulha em uma distopia árida onde a banalização da morte é o espelho da humanidade
Em “Enterre seus mortos”, o diretor Marco Dutra une o sobrenatural com a decadência moral do mundo moderno. Inspirado no livro homônimo de Ana Paula Maia, o longa apresenta uma narrativa intensa e perturbadora, onde o pós-apocalipse é menos sobre destruição física e mais sobre o colapso ético e espiritual da humanidade.
O protagonista Edgar Wilson, interpretado por Selton Mello, percorre estradas desertas recolhendo carcaças de animais em uma cidade árida, quase morta. A paisagem, que remete aos desertos de “Mad Max”, é uma metáfora poderosa do vazio humano e da rotina mecânica diante da morte. Ao lado dele, Danilo Grangheia vive um ex-padre que busca algum resquício de fé num mundo em decomposição.
O longa também flerta com o grotesco e o místico. Em meio ao caos, um culto religioso bizarro surge como tentativa desesperada de dar sentido ao fim dos tempos. Em uma das falas mais marcantes, uma personagem comenta:
“O mundo acabando e eles criando uma religião nova. Eu fico impressionada.”
Essa ironia reflete o tom da obra: uma crítica profunda à banalização da morte e à criação de mitos vazios em meio à desesperança. A fotografia, carregada de tons ocres e poeira, e o design de som impecável — uma marca de Dutra — reforçam a sensação de que o espectador está dentro de um sonho febril, sufocante e hipnótico.
Apesar da força estética, o roteiro por vezes se perde na própria contemplação. As imagens arrebatadoras e o som do “fim do mundo” acabam engolindo parte da narrativa, transformando a beleza em ruído e deixando o público entre o fascínio e a exaustão.
Ainda assim, “Enterre seus mortos” é uma experiência cinematográfica rara: uma reflexão poética e sombria sobre o que resta do humano quando tudo já morreu.


